Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar histórias e depoimentos dos Moradores de Tatuí.
História do Morador: Almiro dos Reis Júnior
Local: São Paulo
Publicado em: 09/08/2004
História de vida
História:
Nasci em Tatuí-SP em 1931. Fiz os cursos primário, ginasial e colegial científico na mesma cidade e, em 1950, entrei na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), onde me formei em 1955. Tenho dois irmãos, Maria Aparecida M. dos Reis e Roberto M. dos Reis. Em 1956 casei-me com Brigida C.N. dos Reis, professora e que trabalhou espontaneamente durante algum tempo com Dona Dorina, conhecida criadora da instituição para apoio aos cegos; temos três filhos: Marcia, bibliotecária, e os gêmeos Almiro, engenheiro de produção, e Gladys, arquiteta. Meu pai, Almiro dos Reis, era médico pediatra, formado em 1926, pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, futura USP, e minha mãe, Gladys Dulce Minhoto dos Reis, era farmacêutica, nunca exerceu a profissão, mas sempre ajudou muito meu pai na realização de suas obras sociais.
Meu pai, foi homenageado em São Paulo e Tatuí, diversas vezes, pelos numerosos serviços prestados à esta cidade, como a criação da Cooperativa Agrícola de Tatuí, do Clube de Xadrez desta cidade, da Associação das Mães para financiar obras sociais, foi pioneiro no uso da soja na alimentação infantil e, principalmente, exercendo a liderança para a construção do que foi o maior asilo para velhinhos do Estado; seu nome está gravado em posto estadual de puericultura e em ruas das duas cidades. Do lado paterno, eram todos de origem portuguesa e vieram para o Brasil no século 18. Meu avô Julio dos Reis, casado com minha avó Julia, foi professor e prefeito em Tietê-SP; em sua homenagem, uma das principais ruas dessa cidade leva seu nome. Do lado materno, meu bisavô Antonio Minhoto era português; meu avô Laurindo Dias Minhoto era brasileiro, foi advogado, prefeito, deputado e senador, colega de turma e grande amigo do presidente Whashington Luis, que conhecí pessoalmente, quando ele retornou ao Brasil, em 1945. Minha minha bisavó Hannah, minha avó Gladys e meu tio Frank, vieram da Inglaterra (Manchester) e chegaram no Brasil em fins do século 19.
Lembro-me bem do entusiasmo de minha avó pela Inglaterra, vibrava com a rainha, com o rei George VI e com Churchill durante a II Guerra Mundial; viveu sempre lúcida e faleceu aos 94 aos. Meus avós Laurindo e Gladys têm seus nomes dados a estradas estaduais da região, em ruas de São Paulo e Tatuí e em bairro desta última cidade (Vila Dr. Laurindo). Meu tio Frank foi presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo e era cunhado do Presidente eleito Julio Prestes, que também conhecí muito, frequentando suas fazendas (Araras e Paiol). Explica-se minha origem inglesa da seguinte forma: meu bisavô Francisco Bernardes era um menino que se interessava muito por máquinas de tecelagem e o dono (inglês) de uma das indústrias texteis de Tatuí, uma das maiores do Brasil na ocasião, o levou para a Inglaterra para que se aperfeiçoasse no assunto; lá ele ficou muitos anos, casou-se com minha bisavó Hannah Hough, tiveram lá alguns filhos e outros no Brasil.
Estudos e influências da família
Sempre gostei muito de ciências naturais e pensei em ser médico. Quando criança, eu fazia “pesquisas” com rãs anestesiadas com éter e, usando um fole e uma fumaça, “anestesiva” abelhas, por alguns minutos, para separar rainhas no apiário que meu pai mantinha na chácara dele, como distração. É possível que a influência do meu pai tenha sido importante e eu o acompanhava frequentemente para ver pessoas picadas por cobras, velhinhos no asilo da época e até observei uma redução de luxação de ombro em plena estrada; além disso, eu tinha muitos tios e primos médicos. Meu irmão mais novo, Roberto, também estudou Medicina e seguiu a especialidade do nosso pai.
Como foi o vestibular para Medicina?
O Estado de São Paulo tinha apenas duas escolas médicas e eram cento e poucas vagas para cerca de pouco mais de 1000 candidatos. Em 1950, na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) havia exames escrito, oral e prático para todas as matérias; passei bem nas provas de biologia e especialmente de física, matéria da qual gostava muito, mas, por pura distração de minha parte, não tão bem no exame prático de química, embora a única matéria prática que eu dominava bem.
E o curso de Medicina?
Quando ingressei na Faculdade de Medicina, São Paulo tinha pouco mais de dois milhões de habitantes. No primeiro ano da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) estudava-se física médica ( algumas horas por semana) e anatomia praticamente em tempo integral; na USP esta matéria era dada em dois anos e, nos tempos do meu pai, em quatro. Depois vinham fisiologia, a parasitologia, a microbiologia e outras matérias. Apenas no terceiro ano começava-se a tomar contato com clínica médica e cirúrgica e, depois, com as demais especialidades. Na ocasião, o médico estagiava na faculdade ou em centros médicos diversos; assim, pratiquei cirurgia durante alguns anos na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, obstetrícia na Casa Maternal e frequentei bastante o Hospital Emílio Ribas (Este grande médico iniciou sua vida médica em minha cidade natal, Tatuí). Bem mais tarde foram criadas as residências; a anestesiologia, por exemplo, que é minha especialidade, começou com um ano, depois dois e hoje é cumprida em três anos. Atualmente, o médico começa a trabalhar efetivamente com quase 30 anos.
O tempo dos médicos sem especialidades
Até 1960, as cidades do interior do Estado eram pequenas. Tatuí tinha meia dúzia de médicos e a maioria não se dedicava a uma só especialidade, a não ser o meu pai que, depois de alguns anos, passou a praticar exclusivamente a pediatra; hoje, cresceu muito e tem mais de 60 médicos exercendo várias especialidades. A Medicina da época era bem menos desenvolvida; as receitas eram enviadas às farmácias para manipulação, fazia-se muita sangria, a niquetamida era um santo remédio e usava-se sangria e ventosas simples ou sarjadas (até hoje tenho a sarjadeira do meu pai).
Como escolheu a especialidade?
Até o fim do curso, eu não sabia bem que rumo tomar. Fiz estágios principalmente em laboratório de análises, clínica médica, pediatria, tratamento de queimados, hemoterapia, obstetrícia, cirurgia e anestesia. Em 1956, prestei concurso para cirurgia no Hospital do IAPC e lá trabalhei durante um ano, mas continuei no Hospital São Paulo (EPM-UNIFESP) a praticar anestesia. Fui convidado para trabalhar no Serviço Médico de Anestesia de São Paulo (SMA-SP), gostei, abandonei a cirurgia, e lá estou até hoje. Não me arrependo de ter escolhido e me dedicado à anestesiologia.
Como foi o início da história da anestesia?
Até meados do século 19, eram usados apenas ópio, bebidas alcoólicas, contenção dos doentes por vários auxiliares do médico para a realização de pequenas cirurgias superficiais, além de amputações de membros e algumas outras poucas intervenções cirúrgicas; consta que Lister, da Inglaterra, amputava um membro em poucos minutos. Em 1996 comemorou-se o sesquicentenário da criação da anestesia geral, realizada com éter sulfúrico, em 16 de outubro de 1846, por William Thomas Green Morton (EUA). O termo anestesia, embora não idealizado, foi proposto por Oliver Wendell Holmes. No Brasil, em 1848, a primeira anestesia geral foi feita por Haddock Lobo, no Rio de Janeiro. Morton estudou dois anos de Medicina, abandonou o curso e formou-se em Odontologia. Antes dele, Horace Wells, com quem Morton trabalhava, tentou uma demonstração de anestesia geral com óxido nitroso (protóxido de azoto), em Boston, no Massachussets General Hospital, mas falhou completamente desde que é impossível executá-la com pequena quantidade de um gás tão fraco e sem associação de oxigênio. Morton aproveitou-se da idéia de Wells, procurou outro fármaco e foi se informar com Charles Thomas Jackson, grande químico da época, que o orientou a usar o éter sulfúrico. Após experimentos em galinhas, no cão da esposa e nele mesmo, conseguiu sucesso no mesmo Hospital. A notícia espalhou-se rapidamente pelo mundo. Entretanto, durante 20 anos, houve grande conflito entre entre Morton (faleceu repentinamente no Central Park) e Jackson (terminou seus dias num asilo para loucos) pela prioridade e até pela patente da descoberta. Morton venceu a batalha, mas nunca recebeu a patente. Na verdade, porém, Morton não foi o primeiro a conseguir anestesia geral com éter, pois em 1842, Crawford Williamson Long (EUA) operou oito pacientes anestesiados. Long morava em Athens, uma cidadezinha do interior da Georgia (USA), sem expressão maior, mas tido como feiticeiro e ameaçado de ter sua casa queimada pela comunidade da pequena cidade, parou, mas, posteriormente, introduziu a analgesia obstétrica quando a usou para dois partos de sua esposa. Contra a opinião dela, não divulgou sua experiência e, mais tarde, manifestou suas razões para o fato, que nunca tiveram verdadeira justificativa, dada a importância da descoberta para o mundo; ele privou a humanidade do alívio de tanta dor e sofrimento por mais quatro anos. Contudo, para muitos, até hoje, Long é o verdadeiro descobridor da anestesia geral.
Em 1848, após vários experimentos, James Simpson, grande médico inglês, descobriu o poder anestésico do clorofórmio, com o qual anestesiou a Rainha Vitoria durante parto, o que foi importante para que o povo inglês aceitasse a “novidade”, também na Inglaterra inicialmente combatida. O debate entre sobre as vantagens do éter e do clorofórmio durou dezenas de anos e, no Brasil, esses anestésicos foram usados rotineiramente em muitos hospitais até princípios da década de 60, principalmente com a máscara de Ombrèdanne. Este aparelho consta de uma bola de metal onde se colocava algodão e éter etílico ou balsofórmio (uma mistura de éter, clorofórmio e cloreto de etila), havia um balão feito com bexiga de porco e um ponteiro servia para modificação da concentração do anestésico, sempre sem oxigênio adicional; assim, o paciente respirava bem menos que os 21% do oxigênio do ar atmosférico e reinalava muito gás carbônico. A anestesia locorregional, só começou quase 50 anos depois. O primeiro anestésico local a ser empregado foi a cocaína, obtida a partir da observação do seu uso por índios sul-americanos, especialmente peruanos e bolivianos, que mascavam e ainda podem ser vistos mascando a droga. Inicialmente foi empregada para anestesia tópica de olhos, descoberta feita por Köller, médico de 27 anos, assistente de Sigmund Freud que já a vinha estudando para tratamento de certas doenças. Acontece que nessa ocasião Freud foi à Paris para visitar a noiva e, quando voltou, Köller já havia usado a anestesia tópica e a apresentado ao mundo. Nos EUA, Halsted e seu assistente Hall, começaram a utilizar a cocaína em autobloqueios de nervos periféricos e ficaram viciados, o primeiro temporariamente e o segundo permanentemente. Em fins do século 19, Bier criou a raquianestesia, empregando a cocaína, e, em princípios do século 20, a anestesia regional intravenosa, usando a procaína; é interessante que, a mando de Bier, um assistente seu aplicou nele, experimentalmente, uma raquianestesia com cocaína e, depois, Bier injetou o mesmo anestésico local no assistente, com sucesso total, o que foi comemorado com muito vinho; porém, os dois sofreram durante dias de intensa cefaleia (agulhas muito calibrosas) e Bier ficou hospedado na casa de seu chefe, Esmarch, até melhorar.
A anestesia peridural começou efetivamente a ser estudada em torno de 1930 e o primeiro cateter de polietileno para anestesia peridural contínua foi introduzido em 1949; o grande progresso dessa técnica ocorreu bem mais recentemente. Com a descoberta de outros anestésicos locais começou o grande desenvolvimento da anestesia locorregional. Em 1906 surgiram os amino-ésteres, derivados do ácido paraminobenzóico: a procaína (neocaína, holocaína, escurocaína) e depois a benzocaína, a percaína e a tetracaína. Em fins da década de 40 começou o uso da lidocaína (amino-amida) e, no Brasil, depois de 1950, anestésico local este que permitiu grande avanço da anestesia locorregional. Ultimamente, outras amino-amidas foram produzidas, como prilocaína, etidocaína, bupivacaína e ropivacaína. Muitos bloqueios anestésicos são hoje muito utilizados para analgesia obstétrica, para analgesia pós-operatória ou como complemento de anestesia geral.
Como foram os primeiros tempos da anestesiologia no Brasil?
Até o início da década de 40 não havia anestesiologistas. Qualquer madre ou atendente de sala cirúrgica era chamado para segurar a máscara de Obrèdanne. O “anestesista” não sabia o que estava fazendo e o cirurgião controlava as condições clínicas do paciente de longe e orientava a profundidade anestésica de acordo com a respiração, com a expansão torácica, com o estado da musculatura abdominal e da cor do paciente. Geralmente, não se associava oxigênio nem se observava continuamente nenhum parâmetro clínico.
Durante a II Guerra, a FEB foi para a Itália sem nenhum médico anestesiologista. O Prof. Alipio Correa Neto, chefe do setor de Saúde da FEB, colocou o Dr. José Monteiro para treinar com médicos norte-americanos que praticavam a anestesiologia há alguns anos; terminada a guerra, ele se tornou um dos pioneiros da Anestesiologia brasileira, ao lado Mario de Almeida, Oscar Ribeiro, Luiz Rodrigues Alves, Kentaro Takaoka, Carlos Parsloe, Renato Ribeiro, Bento Gonçalves, Jorge de Almeida Bello, Carlos Vita L. Abreu, Gil Soares Bairão, Alberto Caputo, Caio Pinheiro, Luiz Branco Júnior, Pedro Gereto e tantos outros. Iniciei a prática da anestesia em 1955, como estagiário, época em que os cirurgiões mais velhos davam palpites o tempo todo em relação às técnicas anestésicas que deveriam ser usadas, inclusive em casos de contra-indicações da conduta por eles pretendida. Esses tempos felizmente foram embora e, a partir da década de 70, as condutas anestésicas passaram a ser de inteira escolha e responsabilidade do anestesiologista, inclusive pelo aumento da complexidade teórica e prática da especialidade.
A medicação pré-anestésica constava obrigatoriamente de atropina ou escopolamina e opiáceo, geralmente morfina, meperidina ou dehidromorfinona e, opcionalmente, de outros fármacos, como clorpromazina e prometazina, todos por via intramuscular. Não existiam os benzodiazepínicos, como diazepam, flunitrazepam, lorazepan e midazolam para administração oral, intramuscular ou venosa. Quando comecei a trabalhar em anestesiologia, já existiam aparelhos de anestesia, rudimentares em relação aos atuais, e a ventilação pulmonar era feita manualmente. Já havia absorção precária de gás carbônico com cal sodada, introduzida por Ralf Waters, o primeiro professor de anestesia do mundo (Madison, Wisconsin, USA), que também iniciou o emprego do ciclopropano na especialidade. Nessa época surgiu o aparelho de Takaoka, grande anestesiologista brasileiro, que permitia ventilação pulmonar em circuito aberto, sem reinalação, e que foi muito usado durante décadas. Como anestésicos eram empregados o éter, o óxido nitroso e o ciclopropano; este último era ótimo anestésico, mas muito caro e altamente explosivo e seu uso exigia muito cuidado com faíscas produzidas por materiais elétricos e que eram proibidos nas salas cirúrgicas.
No Chile houve uma grande explosão em sala operatória que matou todos que lá estavam. Entretanto, no nosso Serviço a rotina era feita com ciclopropano, mas na maioria dos hospitais este anestésico e o óxido nitroso eram utilizados apenas em casos especiais. Nunca cheguei a usar etileno, anestésico explosivo, nem utilizei a avertina, mas acompanhei muitos casos de administração retal dela, pelo próprio cirurgião, ainda no quarto do paciente; complicações, como retite e outras, não eram tão raras. Na anestesia pediátrica usava-se a chamada máscara aberta empregando-se um equipamento semiesférico e gradeado, coberto com folhas de gaze; gotejava-se éter mas, para a indução anestésica, iniciava-se com gotas do perigoso cloreto de etila, antigamente componente dos lança-perfumes, daí a razão da proibição destes objetos. Criança e anestesista inalavam simultaneamente o éter e o exalavam lentamente; sempre que eu voltava para minha casa, meus filhos, ainda crianças, diziam sempre que eu estava cheirando “remédio”.
Os tiobarbituratos, principalmente pentotal sódico e tiamilal sódico, para indução da anestesia por via venosa, estavam começando e foram utilizados rotineiramente até fins do século 20. Foram inicialmente amplamente empregados em Pearl Harbor durante o bombardeio japonês e consta que muitos pacientes faleceram em razão do uso destes fármacos como anestésico único e em altas doses, inclusive em chocados, o que determina grande depressão respiratória, queda violenta da pressão arterial e parada cardíaca. Depois vieram outros anestésicos venosos, como hidroxidiona e fabantol, que produziam muita flebite ou alergias graves, tendo sido usados por pouco tempo. Recentemente foi introduzido o propofol, um anestésico venoso moderno, extremamente útil e que hoje é amplamente utilizado, tanto para início da indução anestésica como para manutenção da anestesia como agente único, associado a um opiáceo, geralmente controlado com bombas de infusão, na dependência das condições clínicas de alguns pacientes ou de certas intervenções cirúrgicas.
Sir Robert Macintosh (Reino Unido), o segundo professor de anestesiologia do mundo, criou um tipo curvo de lâmina de laringoscópio, não tanto para facilitar a intubação traqueal, o que veio a ocorrer, mas para evitar laringoespasmo durante tal manobra. Recebeu o título (Sir) pela criação de um aparelho para proteção dos pescoços dos paraquedistas ingleses durante a II Guerra Mundial e que saltavam com grande peso nas costas. Macintosh esteve várias vezes no Brasil e demonstrou, no Hospital Alemão Oswaldo Cruz (São Paulo), na década de 60, em dois pacientes, a chamada panela de Machintosh, inventada por ele para anestesia com éter e ar em campos de batalha. Aprendi muito com ele sobre raquianestesia. Não havia monitorização, o controle da anestesia era puramente clínica. A pressão arterial era medida com aparelhos comuns, de consultório. As condições de oxigenação eram determinadas observando a coloração das mucosas ou das pontas dos dedos.
O nível da anestesia era controlado por reflexos oculares e palpebrais, tamanho das pupilas, pulso, pressão arterial, expansão torácica, tipo de sudorese, relaxamento muscular e outros sinais. Já eram usados relaxantes musculares (curares) para facilitar o trabalho dos cirurgiões e o controle da respiração. Surgiram primeiro os não-despolarizantes, como d-tubocurarina, galamina e kondrocurare, este semissintético e criado pelo brasileiro Vital Brasil. Ultimamente, melhores relaxantes musculares não-despolarizantes foram introduzidos, como pancurônio, atracúrio, cisatracúrio, rocurônio e vecurônio todos apresentando qualidades e defeitos. Em fins da década de 50 foi lançado um relaxante muscular despolarizante, o iodeto de succinilcolina, causador de frequentes reações alérgicas, que foi mais tarde substituído pelo cloreto de succinilcolina, cujo nome comercial era Taquicurin; como curiosidade, provavelmente considerado como psicotrópico, durante muitos anos tornou-se obrigatório o preenchimento de receita azul, especial para psicotrópicos. Não há antídoto para a succinilcolina e ela é hidrolizada (destruída) no sangue pela colinesterase plasmática; raramente essa enzima é atípica homozigótica e a hidrólise dela pode demorar horas, período em que o paciente será mantido inconsciente para evitar mal-estar, por estar com bloqueio muscular intenso.
Em meados da década de 60 foi quando começaram a ser introduzidos os anestésicos halogenados e o primeiro deles foi o halotano; entretanto, os vaporizadores eram ruins, ocorriam grandes hipotensões arteriais e ele foi temporariamente abandonado, mas cerca de dois anos depois, com melhores aparelhos, passou-se a usá-lo rotineiramente. Nessa época também foi muito empregado um outro anestésico halogenado, o metoxifluorano. Estes e os anestésicos mais antigos são altamente solúveis nas gorduras corpóreas, o que leva o paciente a demorar mais para dormir e acordar. Nessa ocasião foi descoberto que existiam problemas de saúde causados aos anestesiologistas, como abortamentos, cálculos renais e hepatites, pois inalavam diariamente tais anestésicos; foi, então, criada uma comissão latino-americana (Brasil, Argentina e México) para estudar o risco profissional do anestesiologista, da qual fiz parte, e que passou a propor vários sistemas de exaustão desses vapores. Mais recentemente surgiram outros anestésicos inalatórios halogenados, como isoflurano e sevoflurano, que permitem indução e recuperação anestésica rápida e com menores complicações.
Qual foi o primeiro serviço particular de anestesia de São Paulo?
O primeiro serviço de anestesia do Brasil (SMA) foi criado no Rio de Janeiro pelos Drs. Mario de Almeida e Oscar Ribeiro. O SMA de São Paulo foi fundado pelo Dr. Luiz F. Rodrigues Alves, em 1942, após estagiar com esses colegas, no Rio de Janeiro; logo depois foi para os EUA (Mayo Clinic), onde permaneceu por dois anos. Em 1992, o SMA comemorou seu cinquentenário, e quando a história do SMA-SP foi publicada na Revista Brasileira de Anestesiologia naquele mesmo ano pelo Dr. Leão João P. Machado. A maioria dos colegas do Serviço é portadora do Título Superior de Anestesiologia (TSA) e muitos fizeram residência ou estagiaram no exterior, principalmente nos EUA. Este Serviço responsabilizou-se até o momento por mais de 1.000.000 de procedimentos anestésicos.
O SMA-SP sempre exerceu atividades profissionais em numerosos hospitais de São Paulo; atualmente, conta com dezenas de anestesiologistas e ele desempenha atividades principalmente nos Hospitais Alemão Oswaldo Cruz, Sírio-Libanês e Samaritano atendendo a rotina cirúrgica e as emergências deles, dia e noite. Alguns de seus membros exerceram, por vários anos, a Vice-Diretoria ou a Diretoria Clínica desses Hospitais. O SMA-SP esteve sempre no front do progresso científico, exercendo atividades pioneiras de grande valor e manteve constante e volumosa atividade nesse campo, além de didática e associativa. Para citar apenas algumas dessas atividades, ele mantém um CET para residência em anestesiologia há muitos anos, publicou um livro tratando de tema anestesiológico e aguarda a publicação de outro em 1998, colaborou em dezenas de outros tratados nacionais ou estrangeiros, divulgou mais de 200 trabalhos científicos no Brasil e no exterior, alguns de seus membros exerceram a presidência por diversas vezes de várias Sociedades de Anestesiologia, como da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA), foram participantes por muitos anos e presidentes diversas vezes da Comissão do Título Superior de Anestesiologia (TSA), presidiram a Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo (SAESP), quando foi instituido o Simpósio Nacional de Anestesia Obstétrica e foram criados o Prêmio SAESP, a revista Resumos-Literatura Anestesiológica Internacional, o Dia do Anestesista (16 de outubro) e o Museu de Anestesia, e foram importantes para a compra da primeira sede da Sociedade, que permaneceu ativa até 2010, quando outro imóvel foi adquirido, organizaram e presidiram Congressos Brasileiros e o III Congresso Mundial de Anestesiologia realizado em São Paulo (1964), fizeram parte do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Anestesiologia e do Brazilian Journal of Anesthesiology por mais de uma dezena de anos e do Conselho Regional de Medicina (CRM-SP).
Dois dos sócios do SMA-SP exerceram a vice-presidência e, um deles, a presidência (1980-1984) da Federação Mundial das Sociedades de Anestesiologia (WFSA) e receberam numerosos prêmios científicos e títulos honoríficos, como Presidentes de Honra de vários Congressos nacionais e internacionais e Membros Associados, Honorários ou Beneméritos de diversas Entidades Médicas do Brasil e do exterior.
Como é a anestesia de hoje?
A anestesiologia é uma especialidade médica que tem evoluído fantasticamente e colaborando muito para o desenvolvimento da cirurgia e torna-se cada vez mais complexa e exige atenção constante ao paciente durante toda intervenção cirúrgica. É bastante estressante desde que em curto espaco de tempo, podem ocorrer alterações clínicas ou técnicas, que exigem correções imediatas, para as quais o anestesiologista está sempre preparado para corrigi-las. Hoje em dia as anestesias são bastante seguras; complicações importantes intraoperatórias ou pós-operatórias são muito raras. Para uma anestesia geral é necessário hipnose, anestesia propriamente dita e, muitas vezes, relaxamento muscular para permitir uma melhor técnica anestésica e facilitar o trabalho da equipe cirúrgica. Uma anestesia regional proporciona os dois últimos itens, mas o primeiro deve ser conseguido com sedação por via venosa.
O primeiro passo do anestesiologista deve ser a visita pré-anestésica, quando ele vai ao quarto do paciente, investiga suas condições clínicas e histórias de anestesias anteriores, procura verificar se está ou não alimentado, se tem alergia principalmente a iodo, látex, a algum medicamento, procura saber de moléstias paralelas de que sofre ou teve, se toma medicamentos e quais são, se usa prótese dentária, se algum parente próximo teve complicações anestésicas (algumas podem ser de causa hereditária), examina-o, propõe um tipo de anestesia, quando possível, explica as dúvidas do paciente e o que será feito, procura tranquilizá-lo e o alerta para que possíveis pequenas complicações pós-operatórias que eventualmente possam ocorrer e que muito preocupam os doentes, como náuseas, por exemplo, serão resolvidas a contento; aliás, hoje são utilizandos profilaticamente fármacos, como dexametasona, ondansetrona e/ou metoclopramida. Uma das grandes preocupações dos pacientes é com a dor pós-operatória; deve-se explicar que o Serviço mantém equipes de anestesiologistas e enfermeiras especializadas no tratamento da dor pós-operatória, com anos de experiência, e que estarão presentes e indicarão o uso de analgesia peridural contínua com ropivacaína ou bupivacaína, associada ou não a um opiáceo, ou de analgesia venosa com morfina, em ambos os casos com uso de bomba de infusão para analgesia controlada pelo paciente (PCA), programadas para cada doente ou intervenção cirúrgica. Outra questão séria que devemos enfrentar e procurar resolver diz respeito a pessoas que se recusam receber transfusão de sangue, felizmente atualmente pouco utilizada.
Todas estas providências poderão ser tomadas previamente, durante consulta pré-anestésica, em consultório especializado. Finalmente, receita-se ou não uma medicação pré-anestésica, conforme idade, condições clínicas, ato cirúrgico a que será submetido, horário da alta hospitalar e tomam-se outras providências. São usados muito hoje os benzodiazepínicos por via oral, como diazepam, lorazepam e principalmente midazolam, que, em 95% dos casos em que é usado, produz boa sedação e amnésia quase total, o que foi um grande avanço.
Quais são os procedimentos do anestesiologista na sala cirúrgica?
Na sala cirúrgica, todos os equipamentos devem estar vistoriados e confirmada a presença de todo material que será ou poderá vir a ser necessário, como AMBU, ECG, capnógrafo, oxímetro, pressão arterial automática, laringoscópios, filtros, cânulas orofaríngeas, máscaras faciais ou laríngeas, sondas orogástricas, manta térmica, desfibrilador e medicamentos para qualquer situação clínica, inclusive emergencial, como vasopressores, hipotensores, broncodilatadores, atropina, corticóides, opiáceos, relaxantes musculares, analgésicos, antinflamatórios, anti-histamínicos, ß-bloqueadores, antibióticos, opiáceos, antídotos de benzodiazepínicos ou narcóticos, dantrolene e antieméticos. O anestesiologista deve confirmar se e quando a medicação pré-anestésica foi administrada, aguardar sempre a presença do cirurgião ou de auxiliar capacitado, quando obterá informações sobre duração do ato cirúrgico, posições cirúrgicas e via de acesso para a intervenção operatória.
Desde a chegada do doente na sala cirúrgica, deve-se manter com ele contato verbal agradável, confiante e explicativo e confirmar especificamente o jejum e a existência ou não de alergias. A seguir, punciona-se sempre uma veia com uso de botão anestésico local e agulha de calibre ajustado ao vulto do ato cirúrgico; tratando-se de criança pequena, isto é feito somente após indução anestésica com sevoflurano. O paciente é monitorizado principalmente para pressão arterial automática ou, em intervenções grandes, contínua (com punção arterial), pulso, oximetria, volume corrente e minuto, ritmo respiratório, concentração em tempo real de oxigênio e do anestésico usado, eletrocardiografia, capnografia e capnometria (gás carbônico), ritmo respiratório, temperatura central e pressão intratraqueal. Assim, o anestesiologista tem continuamente na tela do monitor todos os dados de que necessitará para conduzir a anestesia da melhor forma possível, inclusive em pacientes bastante idosos, o que antes representava grande risco, e de intervenções cirúrgicas de muitas horas ou antigamente praticamente impossíveis.
Em adultos, a anestesia geral é iniciada por via venosa (principalmente com opiáceo e propofol) e por esta é total ou parcialmente mantida; agentes inalatórios (isoflurano ou sevoflurano) e relaxantes musculares também podem ser utilizados. Para facilitar a ventilação pulmonar, cânulas orofaríngeas de Guedel, tubos traqueais ou máscaras laríngeas são empregados. Durante o procedimento, o anestesiologista deve atentar para diversos detalhes, como manutenção de pressão arterial, pulso e níveis de gás carbônico expirado dentro dos limites ideais para cada paciente, sangramento, executar reposição sanguínea quando necessário, manter atenção com alergias, principalmente antibióticos e analgésicos, e conseguir descurarização perfeita; para resolver este último item, pode ser empregada a neostigmina. O anestesiologista deve preocupar-se não só especificamente com a anestesia, mas, também, com outras coisas, como posicionamento do paciente na mesa cirúrgica, proteção dos olhos, glicemia do paciente diabético, temperatura e aquecimento do paciente com mantas térmicas.
Muitas intervenções cirúrgicas pequenas ou em pacientes extremamente graves são executadas com anestesia local e o anestesiologista participa apenas para controle dos sinais vitais ou para sedação intraoperatória, que poderá ser superficial ou mais profunda. Uma vez terminado um pequeno ato operatório e estando o paciente em ótimas condições clínicas, ele poderá ser levado diretamente para seu aposento. Mas, na grande maioria dos casos, mesmo com possível uso de antídotos de medicações pré-anestésicas ou usadas intraoperatoriamente, como flumazenil e naloxona, ele deve ser enviado à Recuperação Pós-Anestésica (RPA); isto é feito já com prescrição de medicamentos, principalmente para eventuais náuseas e dor, com solicitação de exames laboratoriais necessários e com recomendações à enfermagem sobre cuidados específicos para certos casos. Nessa unidade, deve permanecer geralmente duas ou três horas, quando, então, será encaminhado para seu aposento, mas somente após a avaliação e autorização do anestesiologista.
Alguns poucos pacientes necessitam de maiores cuidados e são conduzidos à UTI pelo anestesiologista, que fornecerá ao médico intensivista todas as informações sobre as condições clínicas pré-operatórias do paciente e das observadas durante o decorrer da anestesia. Todos os dados da evolução clínica além de medicações, equipamentos utilizados e procedimentos realizados até as altas da sala cirúrgica e da RPA devem ser registrados em fichas próprias. Ultimamente, em virtude do número enorme de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos, realizados fora do centro cirúrgico, como ressonâncias, tomografias, litotripsias, cateterismos cardíacos, cardioversões, biópsias de próstata e endoscopias digestivas ou respiratórias, a presença do anestesiologista é bastante requisitada, para acompanhamento médico, sedação ou mesmo anestesia geral.
Como era e como é hoje a analgesia obstétrica?
Todas as maternidades tinham as chamadas salas das dores, local em que permaneciam as parturiente em trabalho de parto, a maioria sofrendo em virtude das dores provocadas pelas contrações uterinas. A analgesia constava apenas de dipirona e petidina em pequenas doses, pois esta última deprime o feto. Isso me impressionava e preocupava muito. Era a época em que era regra, ditada por um professor de obstetrícia, que “uma mulher em trabalho de parto não pode ver o sol nascer duas vezes”, ou seja, ele não podia demorar mais do que 24 horas Alguns obstetras usavam o tricloroetileno (trilene) com um aparelho (Syprane) que permitia regulagem fixa da concentração do anestésico e a própria parturiente o segurava e inspirava a cada início de contração uterina; contudo, nos períodos finais dos partos o anestesista era chamado para a administração do ciclopropano.
Ocorre que o uso prévio do tricloroetileno impedia o uso da cal sodada para absorção do gás carbônico exalado, em virtude de reação química que ocorre entre estas duas substâncias, com formação de produto extremamente tóxico (fosgeno); assim, eramos obrigados a administrar o ciclopropano sem uso de cal sodada, o que complicava bastante a técnica analgésica. Havia um médico que possuia a maior clínica obstétrica de São Paulo e pedia sempre analgesia com ciclopropano, um “cheiro” como ele dizia; nem todos concordavam com ele e lhe deram um apelido: “cheiroso”. A anestesia caudal (sacra) foi pouco e mal empregada na analgesia obstétrica e aplicada por alguns poucos obstetras.
A raquianestesia ou anestesia subaracnóidea, em que o anestésico local é injetado no espaço que contém o liquor, era e ainda é muito utilizada no período final do parto, muitas vezes após longas horas de dores intensas. A procaína era inicialmente empregada como anestésico local; mais tarde, passou-se a usar a lidocaína e, atualmente, a bupivacaína é mais utilizada. Uma das complicações comuns da raquianestesia era a cefaléia pós-anestésica, decorrente do uso de agulhas calibrosas; isto foi drasticamente reduzido a partir de meados da década de 60 quando nosso Serviço começou a usar agulhas bem mais finas, calibre 26. Na anestesia peridural o anestésico local é injetado em muito maior dose e volume de solução. Ocorre que a distância entre os dois espaços é, em média, de apenas 0,5 cm e ambos estão a uma profundidade média de 5-10 cm, mas há técnicas especiais para localizá-los.
A analgesia obstétrica até meados da década de 60 era pouco usada e realizada principalmente com ciclopropano. Na ocasião havia sido proposto um método de analgesia obstétrica com pentotal sódico e ocitóxicos em altas doses por via venosa (narcoaceleração), mas que foi logo abandonado pelas complicações fetais que podia desencadear. Em 1962, li no último número da Revista Canadense de Anestesiologia um artigo sobre o uso da anestesia peridural lombar contínua para analgesia de parto. Era de Philip Bromage, um inglês que foi trabalhar em Montreal (Canadá) e que se tornou um dos mais importantes nomes mundiais da anestesia peridural e que esteve várias vezes no Brasil.
Estudei muito a questão e providenciei todo o material necessário nos EUA, principalmente agulhas e cateteres que, ao contrário do que hoje existe, não eram esterilizáveis (polietileno), mas apenas fervíveis. Naquela época, poucos médicos tinham alguma experiência com anestesia peridural para cesáreas ou mesmo para outras intervenções cirúrgicas e todos nós tinhamos medo de usá-la continuamente, dada a total inexperiência de todos; os pioneirismos são difíceis e preocupantes. Um dia cheguei na Maternidade do SESC e lá estava uma parturiente totalmente transtornada e aos berros e que não se deixava sequer ser examinada, há 12 horas. Possesso, ele me disse: “você quer fazer aquela sua anestesia faça neste caso”. Eu estava aguardando uma multípara calma e colaborativa e pensei: logo nesta parturiente? Mas, resolvi aproveitar a oportunidade.
Eu expliquei à parturiente o que pretendia fazer, ela se sentou e num intervalo sem dor, puncionei o espaço peridural, passei o cateter e injetei uma pequena dose do anestésico local (lidocaína). Até hoje não sei como consegui A paciente começou a sorrir, mesmo durante contrações uterinas violentas. Pensei, a “coisa” funciona mesmo. Foi emocionante, jamais tinhamos visto tal resultado. Passamos a ampliar a experiência para quase 100 casos, que na ocasião foi publicada. Com o tempo, foi confirmado que a analgesia peridural lombar contínua apresenta outra vantagem importante: ela ajuda a coordenar as contrações uterinas e a facilitar claramente a progressão do parto normal. A técnica foi adotada rapidamente em São Paulo e, depois, em numerosos estados brasileiros e no exterior. Hoje praticamente todas as analgesias de parto são feitas com peridural lombar contínua, salvo contra-indicações. Atualmente todos os anestesiologistas já aprendem isso na residência e a população em geral já ouviu falar do método. Incontestavelmente, o SMA foi o grande divulgador da analgesia obstétrica.